Queria sair hoje à noite, mas não posso. Quem me dera, pudesse passear pelo bairro, visitar as praças, ver as crianças brincarem, e por instantes, sossegadamente esquecer dos problemas da vida, mas isso me é impossível. De repente, escuto estampidos. Fogos, não. Tiros. Alguém pode estar ferido, ou quem sabe até morrendo naquela hora. Mais uma vez, a vida perdeu terreno para a morte. Não uma morte qualquer, mas sim a morte súbita, repentina, inesperada; violência que abrevia sonhos, esperanças, projetos, vidas de seres que apesar de tudo, ainda posso chamar de humanos. Talvez, agora, você entenda porque não posso sair à noite.
Meus avôs, meus pais, podiam colocar cadeiras nas calçadas, e em noites de luar proseavam sobre a vida, o mundo e o destino. Hoje, se fizer isso, posso acabar tornando-me testemunha involuntária de alguma briga ou discussão na vizinhança; por isso preferi fechar a janela, única abertura visível para o mundo exterior, uma vez que portões, portas e grades já estão devidamente encadeados. Aos poucos, acabei tornando-me um preso, embora nunca tenha, e menos pretenda, ter cometido crime nenhum.
Até quando vou ter que agüentar tudo isso ? Até que ponto, nós, cidadãos de bem, que cumprimos zelosamente nossas obrigações para com o Estado, que pagamos impostos e votamos, vamos ficar à mercê dos facínoras foras-da-lei, que impunemente banham as ruas e periferias de sangue ? Ninguém agüenta mais tanta criminalidade que rima com banalidade, marca cruel da nossa omissão e indiferença diante das lágrimas das mães que perderam seus filhos, ou dos filhos que perderam o pai, ou das esposas precocemente enviuvadas. As covas frias dos campos santos não poderão sepultar a dor dos que ficam, e que fazem do silêncio um tímido clamor de justiça.
Já que não posso sair, vou assistir à televisão. Diante dos meus olhos desfilam: guerras, conflitos, bombas, explosões, acidentes, discussões, agressões físicas e verbais, estupros, fome, miséria, desemprego, mortes. Fico entediado. De relance, folheio o jornal. Surpreso, leio que mataram mais dois no meu bairro (antigamente, só matava-se um, mas agora só se mata de dois para cima). Saturado de ver, ler, sentir, perceber, observar tanta violência, abro uma garrafa. Depois duas, três, quatro ... Entre uma garrafa e outra, vai uns cinco ou seis cigarros. De agredido, torno-me um agressor. Na ânsia de fugir para escapar da paranóica violência acabo ferindo-me, numa absurda troca: invés da saúde, os vícios.
Ainda bem que já está amanhecendo o dia, trazendo consigo os raios do sol que simbolizam a esperança de um mundo sem sombras, iluminado com os apelos da paz. Da noite escura, restou apenas uma estória: a parábola do medo. Esta que acabei de lhes contar.
* O autor é historiador, professor da rede pública estadual de ensino, escritor; membro da Academia de Letras e Artes da Cidade do Paulista.
É assustador toda esta crescente onda de violência que permeia a sociedade. O Estado é omisso, rouba-nos o direito à uma boa educação,ao trabalho, moradia decente,atendimento médico-odonto-hospitalar de qualidade.
ResponderExcluirInertes, assistimos a humanidade caminhar para o caos.