Apesar de seus confortos, nossas elites são historicamente cansadas
Este movimento de protesto é mais que um simples ato concentrado de indignação: o “Cansei” é uma alegoria de nossa infâmia política. Não é uma ação articulada motivada pela consternação causada pela tragédia do vôo 3054, que vitimou passageiros e tripulantes no maior acidente aéreo do país. Não é também uma reedição da tenebrosa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, ato pré-golpista que antecipou a quartelada de 1 de abril de 1964, quando o Brasil foi arrematado por uma ditadura verde-oliva em prol dos interesses de uma elite ultra-conservadora. Este movimento de cansados televisivos, de emplumadas viúvas da direitona brasileira, de incendiadores de índios e de agressores de empregadas domésticas é simplesmente um retrato de nosso vazio político... nada mais que isso. E descontentamentos entre os ocupantes dos camarotes brasileiros sequer são novidades.
Nosso quadro político raramente pôde contar com o otimismo e a euforia duradoura, pois as decepções nunca tardaram. Em 1822 nos tornamos independentes saudando nosso “herói” português D. Pedro I, cuja política azedou até mesmo a elite que lhe beijava as mãos. O homem correu de volta para sua pátria-mãe-gentil, de onde tornou-se também monarca. Sem o indesejado imperador, entramos em convulsão durante a irrequieta fase regencial até que os inimigos de D. Pedro I decidiram coroar seu filho D. Pedro II. A “Pax Brasiliana” reinou juntamente com o segundo imperador durante relativamente muito tempo, mas os descontentes não deixaram de cumprir suas sinas e descontentaram o governo. Em 1889 D. Pedro II foi destronado e sua coroa cedeu lugar à faixa presidencial no peito de um de seus antigos aliados, o belicoso Deodoro da Fonseca. Era a aurora de nossa República.
Republicanos, continuamos complicados. A Velha República das oligarquias abonadas durou até o instante em que as oligarquias que partiam das margens para o centro do poder decidiram perder a paciência. Em 1930 a República Nova se concretizou como um ultimato: “façamos a revolução, antes que o povo a faça” (frase atribuída ao ex-governador mineiro Antonio Carlos, insigne oligarca dissidente). A Era Vargas buscou conciliar o populismo e o atendimento aos interesses de uma poderosa camada de elitistas travestidos de nacionalistas, coroando como apogeu a ditadura do Estado Novo. E a ditadura durou enquanto durou a parceria entre o governo e os poderosos além do palácio do Catete, que cansaram de Getúlio Vargas. O velho “Pai dos Pobres” voltou, mas também cansou e terminou se suicidando (ou sendo “suicidado”, como crêem muitos). Mesmo assim, o populismo não havia cansado completamente.
Passadas certas atribulações momentâneas, em 1956 o empreendedorismo de JK causou furor. Animados, muitos apostaram no progresso, no concreto, na bossa-nova do presidente galante e caipira, união de pólos tão diferentes entre os brasileiros. JK também enfrentou sua versão do “Cansei” entoada pela crítica do mesmo Carlos Lacerda que cansava Getúlio. A sucessão levou o obscuro Jânio Quadros à presidência, mas este já assumiu o poder cansando e cansado... pediu para sair e ninguém lhe pediu para voltar. Perigoso espectro varguista, o vice-presidente João Goulart quase não chegou ao poder, mas acabou vencendo pelo cansaço e assumiu suas prerrogativas presidenciais também derrotando o obstáculo legal de um parlamentarismo de ocasião. Jango era cansativo e contra ele se insurgiam trabalhadores em greve e conspiradores em atividade. O populismo sem fôlego não resistiu ao golpe que nos levou para nova experiência ditatorial.
A ditadura militar foi o resultado de um “Cansei” de linhas ideológicas traçadas num mapa geopolítico complicado da Guerra Fria. O comunismo cansava os conservadores, que resolveram perseguir o comunismo incansavelmente e instituíram um aparato repressor largo e profundo. Não ficou pedra sobre pedra. Os triunfantes guerreiros marcharam sobre a democracia ao lado de seus aliados civis enquanto alardeavam que construíam o “país do futuro”. Depois de alguns anos, a ditadura também cansou e não teve mais futuro.
Artistas e políticos famosos no palco: era o movimento das “Diretas Já”, realizado pelos cansados da ditadura. Não vingou. O presidente foi eleito pelos cansativos congressistas, mas o presidente eleito não assumiu – morreu antes de tomar posse, conduzindo o vice ao poder. José Sarney foi um presidente eleito sem votos e cansou o país com inflação e políticas econômicas exóticas. Cansados de Sarney, elegemos o vigoroso e jovial Fernando Collor em 1989. O destemido “caçador de marajás” ficou famoso pela TV Globo que o ajudou, mas seu governo foi infame. Cansados, “caras pintadas” tomaram as ruas e o Congresso tomou seu mandato.
Depois de um governo-tampão insípido, incolor e inodoro de Itamar Franco, o “lord” FHC assumiu a presidência e permaneceu por lá durante oito longos anos. FHC provocou euforia ao controlar a inflação mas ele não controlou a recessão. O desemprego galopante e as desilusões econômicas ajudaram a fazer de seu segundo mandato um tortuoso e cansativo período.
Lula não havia cansado de tentar ser presidente. Tentou ser eleito três vezes até conseguir vencer o primeiro herdeiro de FHC. A vitória de Lula contrapunha-se à sua peleja de candidato derrotado, pois foi uma festa. Brasília teve carnaval político no dia de sua posse. As expectativas eram colossais. Até muitos daqueles que historicamente suspeitavam de Lula cansaram de duvidar e o apoiaram, enfim, ninguém jamais chegou ao poder no Brasil tão rodeado de apoio. Mas a desilusão, tão nossa companheira, se fez presente no governo do “companheiro” Lula. Depois de mensalões, sanguessugas e escândalos tão semelhantes àqueles tão comuns na saga de nossa direita no poder, o governo da dita esquerda acabou sendo traduzido como uma decepção fragorosa. Lula se igualou a qualquer direitista que já tenha ocupado seu posto anteriormente. Sua política e seu projeto são coisas de direita. Tudo tão igual como sempre havia sido.
Mas, se nada mudou, o que os cansados do novo “Cansei” estão querendo? Qual a diferença no cacarejar da Hebe Camargo que condena Lula e aplaudia Paulo Maluf? Os artistas eram figuras presentes nos palcos das “Diretas Já” e são figuras igualmente presentes no “Cansei”. Os ilustres e VIPs estão, de uma hora para outra, preocupados com os rumos do país? Estão “ao lado” do povo? O que será que está acontecendo?
O fato mais claro de toda esta loucura está incondicionalmente ligado ao fato de que a política brasileira encontra-se em estado lastimável de degradação. Claro que se observarmos a nossa complexa história política, não deixaremos de concluir que sempre tivemos numa degradante condição, mas agora estamos vivenciando uma nova catarse desta crise perene.
Lula apareceu, para os mais otimistas, como um lampejo de esperança de que o quadro político do país poderia ter alguma mudança em sua feição. Mas a promessa não se cumpriu. Boa parte da “classe média” (este conceito tão vago ultimamente) que outrora se engajava nas campanhas do petista, agora está politicamente perdida. Entre as camadas populares havia anteriormente muitos que faziam vistas grossas aos apelos populistas de Lula, mas hoje esta vasta camada da população lhe afaga sem querer atribuir ao presidente o mesmo descrédito que muitos de seus eleitores (e ex-eleitores, no meu caso) estão lhe nutrindo. Não se pode esperar nenhuma postura diferente por parte dos órfãos da direita planaltina afastada do centro do poder desde a ascensão do petista, pois estes já estavam cansados desde o primeiro momento do governo Lula.
O que dá para avaliar sobre este movimento atual é que ele é um emaranhado de posições políticas contraditórias e incoerentes lançadas num contexto favorável para uma repercussão barulhenta. E, neste sentido, está funcionando. Mas o fato é que o “Cansei” é uma paródia de si mesmo e dos grupos que o sustentam. Socialites que atiram ovos em transeuntes ou o elenco de “Malhação” não são representativos para dar conteúdo a um movimento e, afinal, o tal movimento não tem conteúdo!
Numa política onde os herdeiros dos partidos que sustentaram a ditadura militar hoje são auto-denominados “Democratas” e onde um ex-operário governa favorecendo banqueiros, tudo é possível. Neste contexto, posso concluir que cansei de Lula, mas também cansei do “Cansei”!
Nosso quadro político raramente pôde contar com o otimismo e a euforia duradoura, pois as decepções nunca tardaram. Em 1822 nos tornamos independentes saudando nosso “herói” português D. Pedro I, cuja política azedou até mesmo a elite que lhe beijava as mãos. O homem correu de volta para sua pátria-mãe-gentil, de onde tornou-se também monarca. Sem o indesejado imperador, entramos em convulsão durante a irrequieta fase regencial até que os inimigos de D. Pedro I decidiram coroar seu filho D. Pedro II. A “Pax Brasiliana” reinou juntamente com o segundo imperador durante relativamente muito tempo, mas os descontentes não deixaram de cumprir suas sinas e descontentaram o governo. Em 1889 D. Pedro II foi destronado e sua coroa cedeu lugar à faixa presidencial no peito de um de seus antigos aliados, o belicoso Deodoro da Fonseca. Era a aurora de nossa República.
Republicanos, continuamos complicados. A Velha República das oligarquias abonadas durou até o instante em que as oligarquias que partiam das margens para o centro do poder decidiram perder a paciência. Em 1930 a República Nova se concretizou como um ultimato: “façamos a revolução, antes que o povo a faça” (frase atribuída ao ex-governador mineiro Antonio Carlos, insigne oligarca dissidente). A Era Vargas buscou conciliar o populismo e o atendimento aos interesses de uma poderosa camada de elitistas travestidos de nacionalistas, coroando como apogeu a ditadura do Estado Novo. E a ditadura durou enquanto durou a parceria entre o governo e os poderosos além do palácio do Catete, que cansaram de Getúlio Vargas. O velho “Pai dos Pobres” voltou, mas também cansou e terminou se suicidando (ou sendo “suicidado”, como crêem muitos). Mesmo assim, o populismo não havia cansado completamente.
Passadas certas atribulações momentâneas, em 1956 o empreendedorismo de JK causou furor. Animados, muitos apostaram no progresso, no concreto, na bossa-nova do presidente galante e caipira, união de pólos tão diferentes entre os brasileiros. JK também enfrentou sua versão do “Cansei” entoada pela crítica do mesmo Carlos Lacerda que cansava Getúlio. A sucessão levou o obscuro Jânio Quadros à presidência, mas este já assumiu o poder cansando e cansado... pediu para sair e ninguém lhe pediu para voltar. Perigoso espectro varguista, o vice-presidente João Goulart quase não chegou ao poder, mas acabou vencendo pelo cansaço e assumiu suas prerrogativas presidenciais também derrotando o obstáculo legal de um parlamentarismo de ocasião. Jango era cansativo e contra ele se insurgiam trabalhadores em greve e conspiradores em atividade. O populismo sem fôlego não resistiu ao golpe que nos levou para nova experiência ditatorial.
A ditadura militar foi o resultado de um “Cansei” de linhas ideológicas traçadas num mapa geopolítico complicado da Guerra Fria. O comunismo cansava os conservadores, que resolveram perseguir o comunismo incansavelmente e instituíram um aparato repressor largo e profundo. Não ficou pedra sobre pedra. Os triunfantes guerreiros marcharam sobre a democracia ao lado de seus aliados civis enquanto alardeavam que construíam o “país do futuro”. Depois de alguns anos, a ditadura também cansou e não teve mais futuro.
Artistas e políticos famosos no palco: era o movimento das “Diretas Já”, realizado pelos cansados da ditadura. Não vingou. O presidente foi eleito pelos cansativos congressistas, mas o presidente eleito não assumiu – morreu antes de tomar posse, conduzindo o vice ao poder. José Sarney foi um presidente eleito sem votos e cansou o país com inflação e políticas econômicas exóticas. Cansados de Sarney, elegemos o vigoroso e jovial Fernando Collor em 1989. O destemido “caçador de marajás” ficou famoso pela TV Globo que o ajudou, mas seu governo foi infame. Cansados, “caras pintadas” tomaram as ruas e o Congresso tomou seu mandato.
Depois de um governo-tampão insípido, incolor e inodoro de Itamar Franco, o “lord” FHC assumiu a presidência e permaneceu por lá durante oito longos anos. FHC provocou euforia ao controlar a inflação mas ele não controlou a recessão. O desemprego galopante e as desilusões econômicas ajudaram a fazer de seu segundo mandato um tortuoso e cansativo período.
Lula não havia cansado de tentar ser presidente. Tentou ser eleito três vezes até conseguir vencer o primeiro herdeiro de FHC. A vitória de Lula contrapunha-se à sua peleja de candidato derrotado, pois foi uma festa. Brasília teve carnaval político no dia de sua posse. As expectativas eram colossais. Até muitos daqueles que historicamente suspeitavam de Lula cansaram de duvidar e o apoiaram, enfim, ninguém jamais chegou ao poder no Brasil tão rodeado de apoio. Mas a desilusão, tão nossa companheira, se fez presente no governo do “companheiro” Lula. Depois de mensalões, sanguessugas e escândalos tão semelhantes àqueles tão comuns na saga de nossa direita no poder, o governo da dita esquerda acabou sendo traduzido como uma decepção fragorosa. Lula se igualou a qualquer direitista que já tenha ocupado seu posto anteriormente. Sua política e seu projeto são coisas de direita. Tudo tão igual como sempre havia sido.
Mas, se nada mudou, o que os cansados do novo “Cansei” estão querendo? Qual a diferença no cacarejar da Hebe Camargo que condena Lula e aplaudia Paulo Maluf? Os artistas eram figuras presentes nos palcos das “Diretas Já” e são figuras igualmente presentes no “Cansei”. Os ilustres e VIPs estão, de uma hora para outra, preocupados com os rumos do país? Estão “ao lado” do povo? O que será que está acontecendo?
O fato mais claro de toda esta loucura está incondicionalmente ligado ao fato de que a política brasileira encontra-se em estado lastimável de degradação. Claro que se observarmos a nossa complexa história política, não deixaremos de concluir que sempre tivemos numa degradante condição, mas agora estamos vivenciando uma nova catarse desta crise perene.
Lula apareceu, para os mais otimistas, como um lampejo de esperança de que o quadro político do país poderia ter alguma mudança em sua feição. Mas a promessa não se cumpriu. Boa parte da “classe média” (este conceito tão vago ultimamente) que outrora se engajava nas campanhas do petista, agora está politicamente perdida. Entre as camadas populares havia anteriormente muitos que faziam vistas grossas aos apelos populistas de Lula, mas hoje esta vasta camada da população lhe afaga sem querer atribuir ao presidente o mesmo descrédito que muitos de seus eleitores (e ex-eleitores, no meu caso) estão lhe nutrindo. Não se pode esperar nenhuma postura diferente por parte dos órfãos da direita planaltina afastada do centro do poder desde a ascensão do petista, pois estes já estavam cansados desde o primeiro momento do governo Lula.
O que dá para avaliar sobre este movimento atual é que ele é um emaranhado de posições políticas contraditórias e incoerentes lançadas num contexto favorável para uma repercussão barulhenta. E, neste sentido, está funcionando. Mas o fato é que o “Cansei” é uma paródia de si mesmo e dos grupos que o sustentam. Socialites que atiram ovos em transeuntes ou o elenco de “Malhação” não são representativos para dar conteúdo a um movimento e, afinal, o tal movimento não tem conteúdo!
Numa política onde os herdeiros dos partidos que sustentaram a ditadura militar hoje são auto-denominados “Democratas” e onde um ex-operário governa favorecendo banqueiros, tudo é possível. Neste contexto, posso concluir que cansei de Lula, mas também cansei do “Cansei”!
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